O Processo Grupal Com Pacientes na Hemodiálise

O processo grupal com pacientes na hemodiálise

a saúde sob o enfoque da expressão artística e da contação de histórias

“A vida é um sentimento de liberdade a cada piscar de olhos,

deixa o nosso pensamento fluir e se encher de energias positivas para que o mundo conspire a favor da gente!

Ame sua vida como um cristal, suave e doce.

Brilhe e deixe sua vida irradiar Alegria!”

Cleide Alves Bezerra

Esse tema tem por base uma pesquisa com duração de sete meses, realizada em um Hospital Público do litoral norte de São Paulo, no setor de hemodiálise, com cerca de vinte pacientes, do total de 33, divididos em dois turnos, assistidos por mim, uma vez por semana.

Não farei aqui uma descrição detalhada de todo o método utilizado, mas comentarei, apenas, sobre alguns pontos necessários ao que pretendo desenvolver, ou seja, a saúde, ainda que falemos em doença e, mais especificamente,
Insuficiência Renal Crônica (IRC)

Psicologia Social e Arteterapia

Na linha da Psicologia Social de Pichon-Rivière, com a qual trabalho, o importante em um grupo operativo ou grupo criativo, é que os participantes aprendam a pensar juntos, e compartilhar o que conhecem. Sob esse ponto de vista, pensamento e conhecimento não são fatos isolados, mas sociais – nascem na relação com o outro. Esse outro nos provoca sensações, emoções, intenções, perguntas, nos oferece respostas, hiatos, entusiasmo, desafios e assim por diante.

Assim podem exercitar o protagonismo em seu dia-a-dia, sendo autores de seu destino, rompendo com a mesmice.

A Arteterapia atua de forma complementar à Medicina, tal como a fisioterapia, acupuntura e outros. Seu reconhecimento, como auxiliar desta. ocorreu no século passado, mas desde 1876 há pesquisas sobre arte e psiquiatria. Utiliza materiais e técnicas da Arte, mas não tem a pretensão de formar artistas. No entanto, muitos talentos latentes – isto é, que estão adormecidos – podem ser despertados. A expressão artística é uma forma de acolhimento dos nossos potenciais e reconhecimento da nossa sensibilidade.

Em nós, há um mundo de experiências interiores, rico em símbolos e significados variados. Isto quer dizer que temos, em nosso interior, conteúdos que só podem ser acessados e expressos via linguagem artística. Como os expressamos? Nós o fazemos por meio da literatura, pintura, colagem, escultura enfim, temos diferentes formas de “falarmos” através da construção artística. Isso pode parecer estranho porque não fomos educados, via de regra, a utilizar essa linguagem em nosso cotidiano.

É necessário ser um artista para fazê-lo? Não. Observamos isto nos vários trabalhos realizados pelos pacientes, muitos dos quais verbalizaram que só o fizeram quando na escola e achavam que não conseguiriam concretizá-lo, outros nunca fizeram nada igual, nem na escola, e outros, nunca foram à escola. No entanto, ficaram felizes ao ver sua produção e mostrá-la aos demais colegas, pacientes da hemodiálise. Assim, novos temas – que não apenas a IRC – começaram a fazer parte de suas conversas no Hospital.

Método

As atividades propostas buscavam oferecer aos pacientes um auxiliar terapêutico com a finalidade de contribuir para o alívio de suas angústias, tensões relacionadas à doença e suas consequências, bem como colaborar para sua inserção na realidade com uma qualidade de vida melhor em todos os aspectos (físico, afetivo, social, entre outros), isto é, mais prazer em seu dia-a-dia.

Além disso, seguindo um roteiro, elaborado por mim, verificava se as práticas contribuíam para alterar a qualidade do sono, do humor, e como isso se refletia em outras áreas de suas vidas. Havia também contatos com as enfermeiras, os técnicos de enfermagem e entrevista com o médico responsável, com o intuito de ampliar os dados a respeito dos pacientes.

Usamos vários recursos arteterapêuticos encadeados e articulados ao objetivo proposto.

Recursos arteterapêuticos

Para a quebra de conteúdos já enraizados e cristalizados na mesmice do dia-a-dia dos pacientes, vou relatar, apenas, dois de uma cadeia de procedimentos (para os vários sentidos como audição, tato, visão, olfato) que constituem um método, para pacientes em estado de vulnerabilidade. Esse processo foi se construindo ao longo do tempo, mas não o abordaremos neste artigo. Sua finalidade era propiciar uma melhoria no quadro de saúde. São eles:

a expressão artística dos sentimentos, imagens, sensações, ou ainda, conteúdos interiores acionados pelas atividades propostas, por meio de vários materiais adequados aos pacientes da hemodiálise como lápis de cor, giz de cera, colagem em cartolina, papel sulfite, tecido, entre outros.
a contação de histórias que podem nos ensinar, aliviar nosso coração nas dificuldades, oferecer acolhimento, podem transformar os sofrimentos, amenizar ou mesmo curar nossas feridas. Foram usadas para que os pacientes pudessem recriar suas próprias histórias e não, para as ouvirem como meros espectadores, tão somente.

Histórias em destaque

Gostaria de comentar, em função do nosso tema, sobre o Sr. Juarez (nome fictício). Não havia brilho em seu olhar, nada significativo era percebido em sua vida. Durante o processo, ele e outros pacientes diziam “ter uma vida normal” e, depois de estabelecer um vínculo de maior confiança comigo, falavam de como esse processo “mexia com tudo”, e até ouvi que a vida era como a de “um vegetal”.

Essas falas muito me impactaram. Se havia aqueles e aquelas que lutavam e permaneciam com um sorriso nos lábios, entendi essas frases como algo que podia estar presente no grupo, ainda que essas questões não fossem abordadas diretamente, compondo o que denominamos de conteúdo implícito ou não dito.

Sr. Juarez, e as outras pessoas, do meu ponto de vista, representavam o que, no referencial teórico da Psicologia Social de Pichon-Rivière, é chamado de porta-voz grupal. Isso diz respeito a alguém, ou algumas pessoas que expressam algo seu, mas também falam, sem o saber, ou seja, de maneira inconsciente, de algo que circula no grupo. Um exemplo, só para que isso fique claro, é do filho de pais que estão se separando e possuem dificuldade em estabelecer um diálogo sincero, genuíno sobre esse processo. A criança começa a ter dificuldades de aprendizagem na escola. A dificuldade é da criança, mas ela está sendo uma mensageira, uma portadora da dificuldade de aprendizagem que assola o grupo familiar nesse novo momento. Como vimos, estamos imersos em grupos aos quais pertencemos e falamos por nós e, muitas vezes, em nome deles, sem nos darmos conta desse processo.

A importância do sonhar

Eu perguntei ao Sr. Juarez se ele não sonhava mais, se ele não ensinava seu netinho a sonhar… a ir para outros lugares em seu coração. Ele, apenas, me olhou e nada disse.

Para o Sr. Juarez escolhi a história (1), abaixo, que reconto a você, leitor/leitora, como recontei a ele e a todos os participantes do grupo:

Era uma vez um mascate que tinha uma vida muito pacata e simples. Vivia numa velha casa, com algumas vidraças quebradas, por onde entravam pássaros que cantavam bem cedinho, acordando o mascate. À noite, quando havia lua, o céu prateado, juntamente com o brilho das estrelas, entrava em sua casa e o convidava a sonhar, além de deixá-lo muito feliz! Havia também em seu quintal, além de outras árvores, uma macieira linda, linda, cujos frutos eram doces, doces e muito, muito saborosos!

Esse homem vendia de tudo: agulhas, pedras variadas, preciosas e semi-preciosas, tecidos multicoloridos, partitura de canções, sabonetes, perfumes e até colchetes. Assim era sua vida: saia pela cidade e vizinhança para vender seus objetos e voltava, sempre acompanhado pelo seu fiel cãozinho “Cara Suja”! No entanto, havia um sonho que se repetia várias e várias vezes. Ele dizia ao mascate: “Você precisa atravessar a ponte!”. O mascate acordava assustado, suando em bicas! Mas em seguida, dizia para si mesmo que aquilo era apenas um sonho e continuava seus afazeres, sua rotina. Começava a ir para lá, para cá, falava com um, vendia para outro e o Cara Suja, também, ia para lá e para cá com ele e, assim, aquelas emoções e pensamentos passavam lentamente…

Até que, um dia, aquela voz começou a ficar constante. Não era mais só durante o sono que vinha para lhe dizer, sempre a mesma coisa: “Você precisa atravessar a ponte!”. Durante todo o dia ela o surpreendia. E ele se dizia: “a gente não tem que dar ouvido a sonhos!”

No entanto, essa voz foi ficando tão, tão, tão forte e ele foi descobrindo que uma outra parte dele mesmo lhe dizia: “sonho é uma coisa preciosa!” Assim, ele resolveu, finalmente, fazer a viagem que o levaria além da ponte. Pegou seu farnel e o encheu com água límpida e cristalina, a comida,o Cara Suja e foi na direção do outro lado da sua cidade. Era uma longa jornada que levava um mês!

1 – Anotações da história contada por Alessandra Giordano,
em seu ateliê, em 10 de março de 2008.

Quando chegou à cidade havia tanto trânsito de carroças! Olhou para um lado, olhou para outro, não via nada de excepcional. Até que avistou um rio. Para ele se dirigiu, ao mesmo tempo que pensava: “o que devo aprender aqui?” “Por que devo estar aqui?”

O tempo foi passando, a água e o alimento foram terminando, o dinheiro também. E ele não sabia o que tinha de aprender. A noite chegou e ele imaginou que algo lhe traria a informação. Mas nada ocorreu e ele, desanimado, se questionava sobre a loucura que fizera.

No dia seguinte, atravessou a rua e ficou sentado em um degrau de uma pequena escada que levava à porta de uma loja muito bonita, de artigos femininos e refinados. O dono da loja, um homem empertigado, bastante imponente lhe perguntou: “Forasteiro, o que o traz aqui à porta de minha loja?” O mascate, humildemente, lhe relatou a história de sua viagem até aquela cidade. O homem imponente começou a rir do mascate às gargalhadas e lhe disse que também tinha sonhos que se repetiam, mas imagine se fosse dar atenção a isso, sonhos são sonhos, mas a realidade é muito diferente! “Imagine, disse ele ao mascate, tenho um sonho que me diz para ir a uma cidade – cujo nome era de onde viera o mascate – e lá há uma casa com uma macieira centenária belíssima, sob a qual há muitos tesouros.” Ao ouvir isso, embora o tal homem continuasse a falar, o mascate saiu apressado e nem mesmo se despediu direito. Voltou rápido, rápido, muito rápido! Até Cara Suja tinha dificuldade para acompanhá-lo. Fez o percurso de volta à sua casa na metade do tempo. Quando chegou, esbaforido, foi direto à macieira, revolveu a terra e, qual não foi sua surpresa: havia três grandes arcas cheias de moedas de ouro e pedras preciosas. Ele ficou paralisado, mas muito, muito feliz!Mas como era muito generoso, distribuiu dois desses baús para a gente da sua comunidade, e ficou com um para realizar seu sonho de ser feliz…[1]

E qual é o seu sonho, perguntei a todos? Pergunto a você, leitor/leitora, o mesmo: qual é o seu sonho?

As mudanças expressas em cores e formas

Aos poucos Sr. Juarez foi se entregando aos exercícios e fazendo a meditação proposta. O resultado é que passou, durante o tempo dessa pesquisa, a deixar de ter insônia, a mudança de seu comportamento foi sublinhada pelo médico, responsável do plantão em nosso dia, que apontou o fato dele “estar mais calmo”, passando a solicitar menos a equipe da enfermagem, fato esse desconhecido por mim, até então. Sua última produção, em guache, ilustra uma imagem que se assemelha a um céu, colorido e belíssimo! Algo inacreditável!

Quando sua produção foi mostrada aos seus colegas, os outros pacientes, todos, sem exceção, expressaram o quanto tinham admirado, pelo microfone (sim, adquiri um microfone e uma caixa de som! Assim, todos podiam falar e serem ouvidos, ainda que sentados, no amplo salão da diálise em forma de oito) para que ele ouvisse, o que o fez se emocionar.

Equipe de enfermagem

A equipe de enfermagem foi mobilizada pela expressão artística dos pacientes. Havia um empenho para que as obras fossem produzidas, houve emoção, desejo de compartilhar o material como confecção de flores e folhas, sugestões para que fossem colocadas no painel transportado durante as sessões para o salão da hemodiálise, assim como as rodinhas no painel para que sua locomoção fosse facilitada. Outros setores também participaram, como os que trazem a refeição para os pacientes. Enfim, a atividade funcionou como um eixo organizador da interação e expressão de sentimentos presentes no coletivo.

Alguns dos resultados

Os trabalhos, feitos durante a sessão de diálise em que os (as) pacientes só utilizavam uma das mãos, pois a outra estava com o cateter, culminaram numa amostra coletiva de seus trabalhos, exposta no Hospital. A finalidade dessa exposição era que todos os pacientes pudessem se reconhecer como pessoas criativas, produtivas, capazes de se expressar com cores, com muita beleza e não, apenas, como portadores de IRC, à espera de um transplante ou sem perspectiva de viver com uma melhor qualidade. Nessa amostra, houve expressões artísticas individuais e coletivas. Não é preciso dizer o quanto essa experiência lhes foi significativa. Durante a exposição, a filha de uma paciente relatou como sua mãe ficou “eufórica” com a própria produção. Sabemos como a alegria é um importante auxiliar, no quadro de todos e todas pacientes, ao incrementar a endorfina, o chamado hormônio que provoca a sensação de felicidade.

Considerações Finais

Nessa experiência foi possível notar, a partir da fala daqueles pacientes comprometidos com a nossa proposta, que conseguiram se tornar mais tranquilos, ter esperanças, ter mais segurança em si próprios, melhor disposição de humor, sono com uma melhor qualidade e perceberam que o tempo passava mais rápido durante o processo de diálise. O médico, responsável pelos serviços nesse dia, e alguns técnicos da enfermagem falaram da diminuição das intercorrências como: câimbras, solicitações para virar de um lado e outro da cadeira, queixas sobre a pressão, dor de cabeça e outras para que a diálise se encerrasse antes.

Essa produção coletiva pode parecer algo simples e singelo, mas todos sabemos do seu grande significado. De uma forma simbólica, metafórica, as pessoas exercitaram não a passividade, mas o protagonismo da sua própria história, ou seja, a direção dos fatos, a produção conjunta. Lembrando que é com o outro que nos descobrimos e podemos nos tornar mais inteiros, é com o outro, e com suas percepções a nosso respeito, que ampliamos o sentido de quem somos e o que provocamos ao nosso redor, afinal todos temos um curador e um criador interior, acionado pelo grau de dedicação de cada um, e não apenas pela atuação do psicólogo.

O trabalho esteve pautado pelo processo de criação e recriação de nossas buscas, nossas dores, procurando embarcar numa aventura de simplesmente ser quem somos.

O intento do trabalho foi cumprido. Não o de distrair os pacientes, mas de encontrar um sentido para a vida! Significou empreender uma jornada que exigiu, no mínimo, coragem para se abrir ao novo. Sabemos que não basta, somente, abrir as portas, é necessário se com-prometer com as mudanças em um lugar profundo de nós mesmos, e de forma perseverante. Essa proposta foi firmada pelo desejo de desencadear um processo de releitura do cotidiano, ou seja, de rompimento da rotina de ser sempre do mesmo jeito. Um jeito viciado de achar que não podemos incluir, onde quer que estejamos, cores, novos e bonitos sons, calor humano e criação. E quem disse que isso precisa ser somente por meio do sofrimento? Esse foi o sentido desse trabalho, que se estendeu além dessa amostra coletiva, pois a beleza, a expressão artística e a troca de experiências genuínas e revitalizantes, com o outro, propiciam uma melhor qualidade de viver nossa humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLESSANDRINI, Cristina. Oficina criativa e Psicopedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.

CARVALHO, Maria Margarida M. J. A arte cura? Recursos artísticos em arte terapia. Campinas: Psy II, 1995.

DOMINGUES, Ideli. Da brinquedoteca à hemodiálise: o caminho de uma arteterapeuta. Histórias, cores e expressões de beleza em contexto de vulnerabilidade. Monografia. Alquimy Art. São Paulo, 2008.

ESTÉS, Clarissa P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. 3 a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

FABIETTI, Deolinda M. C. F. Arteterapia e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

GIORDANO, Alessandra. Contar histórias como possibilidade do cuidar-se. In:SECURATO, Sílvia Bruno (coord.). Nós, Mulheres. São Paulo: Artes Médicas, 2002.

OBADIC, Anne Isabelle. Hemodialisart: Arte Terapia aplicada a pacientes em programa crônico de diálise. In: CIORNAI, S. (ORG.). Percursos em arte terapia. Arte terapia, educação, arte terapia e saúde. São Paulo: Summus, 2005.

OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro: Campus, 1995.

PICHON-RIVIÈRE, E. El proceso grupal. Ediciones Nueva Visión: Buenos Aires, 1978.