Prioridade Para Transplante de Fígado

TRANSPLANTE DE FIGADO E A LISTA ÚNICA

A mesma sociedade que se outorga o direito de transplantar órgãos de doadores falecidos deve assumir também a responsabilidade de distribuí-los de forma equânime, transparente e auditável. A lista única de receptores adotada no Brasil nos últimos 11 anos atinge plenamente esses objetivos. Entretanto, amplo noticiário sobre eventuais irregularidades ocorridas no transplante de fígado no Rio de Janeiro torna oportuno reafirmar a eficácia e a segurança desse método a fim de evitar efeitos negativos na autorização familiar, parte da já insuficiente captação de órgãos em nosso País.

Esses efeitos seriam particularmente inoportunos uma vez que recentes medidas adotadas pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT) do Ministério da Saúde (MS) aumentaram a captação que, em São Paulo, elevou em 29% o numero de transplantes no primeiro semestre deste ano.

Toda vez que em assistência médica a demanda é maior que a possibilidade de atendimento é necessário estabelecer um critério de prioridade, ou seja, a quem atender primeiro. Essa situação é mais importante no caso dos transplantes uma vez que são indicados somente para pacientes sem outra forma de tratamento capaz de evitar sua morte em curto prazo.

O transplante de fígado foi realizado com sucesso pela primeira vez no Brasil em 1985 e, a partir de 1989, surgiram várias equipes que seqüencialmente recebiam os enxertos e decidiam quem transplantar. Observou-se, porém, que essa sistemática, na qual o enxerto era destinado às equipes, determinava grave distorção. Nos hospitais privados a espera era de 15 dias pelo pequeno número de pacientes capazes de pagar o alto custo do tratamento enquanto que no Hospital das Clínicas, que transplantava apenas pacientes SUS, a espera ultrapassava um ano.

Em 1997, a fim de corrigir essa injustiça, o MS estabeleceu a lista única na qual todos os pacientes são inscritos na central de transplantes (CT) da Secretaria Estadual de Saúde que, obedecendo um critério constante, determina quem deve ser transplantado, ou seja, o enxerto é destinado ao receptor.

Durante 10 anos, a lista obedeceu a um critério cronológico de prioridade que transplantava os inscritos conforme sua data de inscrição. Tinha a vantagem de ser totalmente objetiva e de fácil controle, mas pacientes menos graves eram transplantados antes de outros mais graves que faleciam durante a espera.

A partir de 2006, após ampla discussão, o critério passou a ser por gravidade, ou seja, transplantam-se primeiro os mais graves já que os menos graves podem aguardar graças à sua maior reserva funcional. Como a avaliação clinica da gravidade depende de interpretação subjetiva, e, portanto, passível de eventuais influencias espúrias, adota-se o critério MELD que calcula a gravidade de cada caso por uma fórmula matemática baseada em resultados numéricos de exames laboratoriais.

Visando maior controle da lista única adota-se, obrigatoriamente, uma sistemática que inclui cuidados:

Gerais

gravam-se e armazenam-se todas comunicações telefônicas da ou para a CT;
disponibilizam-se todos os dados via Internet;
todos os meses, enviam-se ao Ministério Público a relação dos pacientes inscritos na lista única, dos doadores notificados, dos enxertos aproveitados, dos transplantes realizados, e a gravação de todos os telefonemas realizados pela CT.

Receptor

todos os candidatos são inscritos na CT e por ela ordenados conforme o critério MELD;
são aceitos apenas exames realizados em laboratórios credenciados;
periodicamente, o cálculo do índice MELD é repetido pela equipe responsável que comunica à CT eventuais alterações para mais ou para menos.

Doador

por determinação legal, a disponibilidade de qualquer doador é notificada à CT;
a CT avisa por telefone a equipe do receptor em primeiro lugar na lista com tipo de sangue ABO compatível. Informa também algumas variáveis relacionadas à qualidade do enxerto como dados clínicos, peso, idade do doador e resultado de exames laboratoriais e sorológicos.

Transplante

se o transplante for realizado, a equipe notifica a CT para que o receptor possa receber gratuitamente do Estado a medicação imunossupressora pelo resto da vida;
se a equipe recusar o enxerto, as razões da recusa são registradas e a CT oferece o órgão ao próximo receptor na lista, habitualmente de outra equipe. A seqüência se repete até que o enxerto seja transplantado;
apenas se nenhuma equipe o aceitar o enxerto é descartado.

Percebe-se, assim, que o exato cumprimento da lista única é fiscalizado pela CT, pelo Ministério Público, pelos membros de todas as equipes e, via Internet, pelos outros pacientes inscritos.

Teoricamente, a desobediência só pode ocorrer de uma forma grosseira transplantando outro paciente em prejuízo daquele para o qual o enxerto foi destinado ou de forma mais elaborada alterando o resultado dos exames laboratoriais de tal forma a aumentar seu índice MELD, transferindo o paciente para o topo da lista.

Em qualquer uma das hipóteses, a fraude é facilmente detectável e cada uma das instancias fiscalizadoras agirá no âmbito de suas atribuições para confirmar o ocorrido, analisá-lo, julgá-lo e, eventualmente, puni-lo nos termos da legislação vigente.

Entretanto, se apesar de todos esses cuidados ocorrer alguma falha isolada, ela deve ser dimensionada ante os 4.734 transplantes de órgãos, dos quais 971 de fígado, e aos 13.887 transplantes de tecidos realizados no Brasil em 2007. São vidas que foram salvas graças à generosidade de outros, por meio de um tratamento inovador que depende, porém, mais do que os anteriores, das limitações inerentes à condição humana de quem os realiza.