Tragédia Ou Transformação na Educação: O Efeito Da Resiliência

Tragédia ou Transformação na Educação: o Efeito da Resiliência

Tragédia, na antiga Grécia, era uma peça teatral em verso, ao mesmo tempo dramática e lírica. Nela figuravam personagens heróicos, em ações nobres e dramáticas. Tragédia é um acontecimento funesto que desperta piedade, como a mesmice da educação, que muda para não mudar. A transformação da educação é possível, basta dar o primeiro passo: a escola querer mudar, e os profissionais terem a coragem de protagonizar essa conquista.

O título é provocativo, mas não deixa de expressar a contradição presente na escola de ensino fundamental, onde a educação navega entre êxitos e fracassos.

Vejamos então…

Ponto de partida

Vivemos o cotidiano como se percorrêssemos labirintos que nos levam a enfrentar tragédias com naturalidade. Com semelhante displicência não avaliamos se o planeta em que vivemos poderá ter outros milênios, pois o homo sapiens tornou-se eficiente gestor de sua auto-destruição, na qual se entrelaçam drogas, guerras, ações criminosas, injustiças sociais. E para completar, desencontros afetivos no cotidiano, entre pessoas que se entendem e se desentendem ao navegarem pelos amores e ódios de suas relações.

O paradoxo é que nossa sobrevivência depende de nós, seres humanos, que, por sua vez e com urgência, precisam resgatar a esperança, o positivo de vivências exitosas, para conseguirem salvar a si mesmos e ao planeta, de múltiplos fracassos. Nesse cenário, o alerta máximo está nas mãos dos cidadãos adultos, que deverão provocar uma urgentíssima ruptura de caminhos. Caminhos por onde passam crianças e jovens, na família e na escola. Caminhos que, muitas vezes, são descaminhos e, com certa freqüência, estimulados pelos meios de comunicação de massa, pela televisão, pela internet. A ruptura implica, entre outras coisas, limpar o lixo sócio-cultural a que as novas gerações têm fácil acesso e, em seu lugar, ou concomitantemente, fazer proliferar novas possibilidades , não apenas para a sobrevivência na tragédia, mas para se viver a vida com efetivas chances de êxito. Êxitos decorrentes de formarmos cidadãos capazes de se pensarem, e ao mundo, de um modo crítico e criativo, de enfrentarem desafios, de viverem o seu tempo com saúde física, mental e social; de pertencerem a uma sociedade humanizadora, que não vive à espera de soluções miraculosas, mágicas. Cidadãos capazes de superar a confusão moral que desrespeita valores básicos dos seres humanos, dos quais destaco: o respeito mútuo, a co-responsabilidade, a solidariedade entre “um eu e um outro”, sem o que e aos poucos e, quem sabe, sem perceber, estamos criando uma sociedade de “homens de pedra”.

Que caminhos está tomando a nossa sensibilidade? A erosão de valores humanos intensifica-se de tal modo que, atualmente, a convivência humana é marcada por virtudes e vícios, pela aceitação desse modus vivendi que atua contra a vida e não a favor dela, que estimula a desestruturação interna das pessoas, de seus grupos e de suas instituições, criados para abrigá-las e protegê-las, socializá-las e humanizá-las. Não desqualifico as conquistas humanas, apenas enfatizo a perda de critérios, de bom senso, e de limites. Vivemos sucessivas crises e mudanças que, atropeladas por obstáculos nem sempre superados, afetam decisões sobre o que incorporar à sociedade.

Quais as conseqüências, a curto, médio e longo prazos, de vivermos, cronicamente, situações psico-sociais adversas? Há soluções?

As soluções, talvez, venham pela clara conscientização de como, na contracorrente, podemos criar antídotos aos efeitos dessas situações de risco. Como libertar crianças e jovens dos danos psico-sociais que essas vivências podem causar?

Na escola, parece estar uma dessas soluções. Como educadora e psicóloga social, há algum tempo, me preocupo com os conflitos vividos por educadores e educandos, especialmente no contexto da escola de ensino fundamental. Estou convencida que a solução dependerá da conjunção de dois fatores: motivação coletiva para uma reviravolta da escola; fortalecimento do vínculo em torno do ato de aprender. Como realizar essa conjunção? Inicialmente, considerando-se o efeito da resiliência, ao se contrapor as “forças de vida” às “forças de choque”, e completando, a capacitação dos professores para viverem com os alunos um processo de aprendizagem em grupo.

O efeito da resiliência

Resiliência é um conceito da física que significa a resistência de um corpo aos choques; considera também que a fragilidade de um corpo é tanto menor quanto maior é a sua resiliência. Pesquisas nessa área vem sendo feitas com jovens, e os resultados têm sido positivos.

Minha hipótese é a viabilidade da superação das adversidades da escola, pela proposta otimista da resiliência. Penso na escola de ensino fundamental, porque esta instituição concentra motivações com as quais se desenvolvem as novas gerações e, num movimento centrífugo, poderemos fortalecer as “fontes de vida”, em contraponto às “forças de choque”. Fonte de vida, ou fonte transformadora de atitudes de mudança sustentadas não apenas em aprender conteúdos de uma disciplina, mas, por meio deles, o “aprender a aprender a viver”, o aprender em grupo.

Considero válido estimular e fortalecer a resiliência no contexto da escola, instituição que acumula os desacertos da família e da sociedade, sobrecarregando-se com dificuldades que são dela, com outras que não são, e que a paralisam (fontes de choque), inviabilizando a convivência e o aprender (fontes de vida).

Na escola, entendemos a resiliência como a relação professor-aluno-conhecimento (corpo), resistindo a um contexto sobrecarregado de dificuldades internas/externas, que inviabilizam uma convivência de qualidade, dos professores com os alunos em torno do aprender (choque).

A equação resiliente é:

Fontes de vida
Fontes de choque
relação professor-aluno
>> resistindo >>
ao contexto da escola
(corpo)
(choque)
vínculo em torno do
conhecimento
>> no >>
ato de aprender

O efeito da resiliência será uma reviravolta no status quo de múltiplas violências vividas por professores e alunos na escola e, de modo especial, na sala de aula. Dependerá de um movimento intenso e intensivo, que provoque uma apropriação constante, do “potencial resiliente”circulante na escola.

Capacitar o professor

Os professores têm sido capacitados em cursos e formações continuadas, mas têm havido carências relativas à qualidade do vínculo professor-aluno-ato de aprender. Há um desconhecimento de como esse processo, essencialmente grupal, produz processos psíquicos grupais que têm dinâmicas regidas por leis próprias, às quais o professor precisa se capacitar para poder decodificá-las. Isso significa compreender os significados do que é dito e do que não é dito, ficando nas entrelinhas da comunicação, conteúdos que permitirão ao professor entender se o aluno está aprendendo e o porquê de não estar, decodificando esses implícitos que são decorrentes da atualização de saberes anteriores e de como eles são, ou não, incorporados ao aprender um novo conhecimento. Com essa capacidade, o professor intervem com a qualidade de quem está facilitando o protagonismo dos alunos, ao estimular um processo de aprendizagem grupal, em que os saberes dos alunos incluem dúvidas, críticas, dificuldades de entendimento, ansiedades, e sugestões em relação ao novo conhecimento, aceitos e intermediados, reconhecidos e estimulados pelo professor e explorados entre os alunos. Nessa qualidade de produção conjunta, o aluno terá efetivos meios de incorporar o novo conhecimento à uma nova visão de vida.

A riqueza dessa nova aprendizagem que se articula, que se multiplica, nesse aprender coletivo do espaço grupal da sala de aula, constitui-se na fonte de vida que irá impactar a força de choque, as dificuldades e crises vividas pela escola.

A resiliência irá permitir o fortalecimento da identidade do professor e do aluno, pois a construção conjunta do conhecimento pelos alunos, intermediada pelo professor, se configurará como raízes internas do “tornar-se humano”. O aluno que, ao aprender o conteúdo de uma disciplina, aprende também a viver, renasce como cidadão pelo exercício exitoso do co-respeito, da co-responsabilidade, pela complementariedade e co-operatividade crescentes entre alunos interligados no espaço grupal da sala de aula. Nesse vínculo em torno do aprender, professor e aluno superam o anonimato e a violência na educação. O aluno se transforma a partir de seu interior, pela ação de um grupo social humanizador.

As falhas na educação decorrem de estratégias e táticas que não viabilizam a proposta educativa. No momento crucial do ato de aprender é que forças de choque têm vencido as fontes de vida, ao não ocorrer a transformação de atitudes e de comportamentos dos alunos. A transformação não tem ocorrido em função da ausência de um vínculo com o professor, fundado no acolhimento das demandas internas dos alunos.

Superar dificuldades

O “aprender a aprender” na sala de aula supõe superar dificuldades, as quais formatam a contradição das tragédias e das transformações da educação, de êxitos e fracassos da escola.

O lado trágico da escola começa pela baixa auto-estima do professor em conseqüência de sucessivos descréditos de seu papel, e da desvalorização de sua função. Daí, vem a sensação de impotência, completando o cenário das frustrações em que vivem professores e alunos: alunos que não conseguem aprender, ao lado de professores que não conseguem ensinar; excesso de alunos em sala de aula, impedindo o reconhecimento de cada um por parte do professor, ou, pior ainda, o desconhecimento do nome do professor pelo aluno (alerta máximo da falência do sistema); indisciplina do aluno que inviabiliza qualquer aula; indisciplina que, por um lado, precisa receber claros limites por parte do professor e da escola, mas que, por outro lado, deve ser interpretada como um sinal, um sintoma, expresso por alunos que estão trazendo à tona o desagrado, o desprazer, a rejeição ao atual “aprender” desenvolvido na sala de aula, onde muitas vezes o desrespeito se generalizou.

O lado exitoso da escola está no esforço de professores e alunos quando, apesar das adversidades, conseguem se libertar dos riscos das “forças de choque”, ou seja, das agressões, das desqualificações que criam um clima em que não se consegue nem ensinar nem aprender os conteúdos das disciplinas, e, menos ainda, incorporar o aprender à vida; no esforço constante de recomeçar, destaco a dedicação sem limite do professor que realiza como pode sua vocação.

Ao contrário do que se poderia esperar dos investimentos feitos na escola o que constatamos, geralmente é um fraco resultado na sala de aula. Muda-se muito para pouco se mudar atitudes de professores e de alunos, pois as estratégias e táticas adotadas geralmente não resistem a uma avaliação mais profunda. E, muitas vezes, já se prevê o fracasso desses investimentos, se mais não for, pelas falhas em ganhar a aceitação das mudanças por parte dos que irão realizá-las, provocando uma reação em cadeia de mal- entendidos, boicotes e frustrações. O pior, quando a porta da sala de aula se fecha, o professor que não aceitou as mudanças, além de pacientemente esperar o fracasso, continua o que sempre fez, alheio às ansiedades do aluno frente ao aprender.

Transformar a escola

Mas afinal, a escola pode ou não ser transformada, de modo a obter efetivos resultados? Pode ou não superar a tragédia e viver o êxito?

A minha convicção é que a escola pode ser transformada e a estratégia deverá conter meios para atingir todos os seus segmentos, simultaneamente, e com um projeto adequado a essa árdua empreitada. O movimento transformador deve ser intenso, constante, com táticas que expressem a possibilidade de uma extensa co-operatividade entre todos, ou seja, de ações a serem desenvolvidas simultaneamente em todos os espaços internos da escola, envolvendo diretores, professores, alunos, funcionários e pais, assim como, no espaço de fora da escola, a comunidade. O esforço é urgente e de todos.

O projeto contagiará e gratificará professores e alunos, seus autores, ao terem suas necessidades psico-sociais consideradas, e clareza do que se espera deles para a efetiva implantação, acompanhamento e consolidação do projeto de mudança. A constante avaliação do processo em desenvolvimento deve ser feito com adequados recursos técnicos, e seus resultados deverão ser apresentados às diferentes categorias para que os dados sejam incorporados às ações. A transformação irá ocorrer por mudanças de atitudes. Estas supõem que se considerem também a presença de atitudes de sabotamento, exigindo especial atenção.

Os resultados deverão ser visíveis nas relações entre todos os profissionais e, mais efetivamente, nos vínculos entre professores e alunos em torno do ato de aprender. Se os investimentos feitos não chegarem como resultados na sala de aula não terá havido transformação.

Concluindo, a transformação da escola mudará o perfil do educador, e, quando isso ocorrer, significará que teremos transformado a educação. Teremos tornado possível o aparente impossível, conseguir humanizar a escola, superar tragédias e investir com êxito na educação.

Referências Bibliográficas

Abrech, R. ( 1994). A Avaliação Formativa, Rio Tinto,Portugal: Asa.

Boff, L. (2003). Ethos Mundial – Um consenso mínimo entre os humanos,

Rio de Janeiro: Sextante.

Fernández, A. ( 2000). Poner em Juego el saber, Buenos Aires: Nueva Viíon.

Freire,P., Quiroga, A. (1985). El proceso educativo según Paulo Freire y Pichon-Rivière, Buenos Aires: Cinco.

Garcia, Carlos M. (1999). Formação de Professores, Porto: Ed.Porto.

Gayotto, M.L.C.. (2004). Liderança III – Aprenda em qualquer idade, em todas as idades, Petrópolis: Vozes.

Jaitin, Rosa. (1988). El psicólogo educacional, el educador y la institución, Buenos Aires: Búsqueda.

Land, G., Jarman,B.(1990). Ponto de Ruptura e Transformação, São Paulo: Cultrix.

Langer, Rosa J. de (1985). Aprendizaje, juego y placer, Buenos Aires: Búsqueda.

Masdevall, Maria G. e outros,(2000). Como Criar uma Boa Relação Pedagógica, 2 ed. Lisboa: Asa.

Morissette, D. e Gingras, M. (1999). Como Ensinar Atitudes – Planificar, Intervir, Valorizar, Lisboa: Asa.

Pichon-Rivière, E. (1978). El Proceso Grupal – Del Psicoanálisis a la Psicologia Social.4.ed. Buenos Aires: Cinco.

Souto, M. ( 1993). Hacia uma Didáctica de lo grupal, Buenos Aires: Miño y Dávila.

Strauven, C. (1994), Construir uma Formação – Definição de Objetivos e Exercícios de Aplicação, Lisboa: Asa.